“As antinomias do Direito”: uma proposta de jurisdição para a descentralização do poder

Multiciência 12 abril 2018

Para quem não conhece o significado de política e de direito, é comum associar suas definições e confiança somente a quem compõe os cargos dos sistemas Executivo (presidente, governadores, ministros, prefeitos), Legislativo (Câmara dos deputados e Senado Federal) e Judiciário (Supremos Tribunais).

Mas, a política – que se subdivide em políticas (de segurança, educação, saúde, etc.) – e se torna possível através de direitos – benefícios garantidos às pessoas através de leis da Constituição Federal –, deve ser construída pelo povo. E é dever de todas as pessoas, conhecer, debater e agir, ao invés de deixar que os governantes controlem o Estado.

Diante disso, e de todo o cenário político nacional atual, se faz cada vez mais necessário entender o conceito de direito enquanto ciência política, social e filosófica. Assim, será possível entender como funcionam os julgamentos e condenações do Supremo Tribunal Federal – STF, por exemplo, sem se deixar manipular pelos discursos que a grande mídia impõe.

É o que propõe Luís Eduardo Gomes do Nascimento, professor do curso de Direito do Departamento de Ciências Sociais (DTCS), da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus III, em seu livro: As Antinomias do Direito na Modernidade Periférica. Segundo ele, existem conflitos de interpretação das leis, já que elas não abrangem as minorias sociais.


Para entender como a obra foi idealizada, os temas centrais, as relações abordadas e o sentido do direito no Brasil a partir da escrita de Luiz Eduardo, confira a entrevista.


MultiCiência: Em que consiste a modernidade periférica?

Luís Eduardo: A modernidade periférica é um termo que trata do fato da centralidade do pensamento europeu, considerado predominante e que não dá lugar de fala às minorias, como a América Latina. A Europa só se consolidou como centro do mundo depois que a América foi descoberta e subjugada como periferia, desde então, vivemos sob um pensamento colonizador em que padrões e teorias não abarcam o Brasil. O que proponho é pensar o direito feito pelo e para o povo num processo de descolonização.

MultiCiência: Como o livro foi planejado e a partir de quais concepções os temas foram escolhidos?
Luís Eduardo: Existe, por trás de todos esses temas, um eixo comum que é a ideia de antinomia, cuja obra se restringe a da antinomia do direito. Antinomia do direito está relacionada ao conflito entre duas normas válidas que transcrevem comportamentos diferentes. Para essa definição, usei o conceito de Fredric Jameson, que diz que a antinomia é o sintoma de uma contradição. Então, em cada texto do primeiro capítulo, há sintomas de contrações, como o conflito entre a faculdade de filosofia e a faculdade de direito. Mais adiante, descrevo as contradições entre o uso público da razão e a apropriação privada da linguagem. Outro exemplo é baseado no conceito de Ferrajoli, que fala das antinomias entre os direitos do homem, enquanto ser individual, e do cidadão, enquanto ser coletivo. Já de acordo com Marx, há uma contradição, no plano material; é a busca por atender seus próprios fins enquanto indivíduo, e como cidadão, buscar agir de forma mais altruísta.  Então, apesar das diversidades, há antinomias em vários aspectos.

MultiCiência: Nas primeira e segunda partes o senhor aborda o conceito de Hermenêutica (Filosófica e Jurídica Analógica). Qual o significado desse termo?  
Luís Eduardo: A hermenêutica é a arte da interpretação. No livro, trato de um problema de uma apropriação privada da linguagem. Que é baseada na filosofia alemã que traz o conceito, não no sentido metafísico, mas sim, da representação. A representação é individual, então, quando um juiz toma suas conclusões, ele está se apropriando privadamente da linguagem. E, essa posse gera justamente essas distorções, porque é a interpretação da lei em detrimento de determinados setores mais marginalizados.

MultiCiência: E do que trata a Hermenêutica analógica?
Luís Eduardo: Essa é uma construção nova, que não é notada no Brasil. Inclusive, fico contente por ela ser estudada aqui na UNEB.
Ela inicia com Paul Ricœur, que refaz a ideia de Aristóteles em que o ser diz de várias maneiras, defendendo, assim, a plurivocidade. Assim, ele remete ao conceito de analogia, cuja interpretação é correta dentro desse campo, pois é criado um novo texto ao invés de se adequar a moldura do texto. Portanto, não se trata apenas de uma voz, nesse caso, a do Estado, no conceito de univocidade e nem voz nenhuma, excluindo, assim o Estado, na equivocidade. Esse termo não quer dizer que haja uma só resposta e nem que qualquer resposta possa ser abarcada pelo texto. A analogia no direito é vista como expansão de significado, só que nesse caso, ela é colocada num processo de interpretação, na medida em que estabelecemos qual o campo de ação possível, sendo, assim, uma forma de controle racional das decisões judiciais.

MultiCiência: Qual a relação entre a linguagem e o direito?
Luís Eduardo: Habermas, por exemplo, tem uma visão sobre a “intersubjetividade”, em que dois sujeitos isolados se encontram por meio dela própria. Essa mesma visão, Marx chamava de “robinsonada”, que é quando a pessoa tem uma situação muito complexa, por exemplo, economia, política e até ideologia, e isso pode se reduzir a dois indivíduos isolados. Na verdade, o indivíduo já é comunitário e a linguagem tem esse mesmo caráter, inclusive em sua apropriação como bem comum.

MultiCiência: E, qual a associação entre as faculdade de filosofia e faculdade de direito?
Luís Eduardo: O direito e a filosofia vivem em um confronto ativo, porque uma instância transmite aos órgãos soberanos e outra vive a questionar se essa instância é ou não favorável à razão comum.
Em meu livro, essa definição é baseada em um dos últimos textos de Kant. Ele percebeu que possivelmente haverá um conflito entre a faculdade de direito e a faculdade filosofia, porque o direito estuda as regras, que são anunciadas por uma autoridade, e um jurista não vai buscar a gênese dessas normas, ele simplesmente as acata. O que se questiona é se essas normas são justas, compatíveis com a razão comum e o papel da filosofia é fazer esse controle, exercer o uso da razão e lutar contra o poder estabelecido.

MultiCiência: Esse poder estabelecido seria outorgado pela própria legislatura?
Luís Eduardo: Isso é um grande problema, por que essa questão me remete ao limo do poder. Porque aceitamos os órgãos que exercem o poder? Isso é um processo muito complexo. Como um poder se impõe a ponto de ele se colocar como instância soberana e começar a estabelecer normas? Então, até nisso a filosofia pode questionar as instâncias do poder.

MultiCiência: Qual o papel da filosofia e quais as relações entre a Psicanálise e as leis?
Luís Eduardo: Kant coloca a filosofia como exterior ao Estado. Porque na verdade são três faculdades que o governo determina seus cânones: direito, medicina e teologia; já a filosofia, é superior. Sobre Psicanálise e as leis, cito Lacan especificamente, que associa as leis ao superego, instância que determina comandos que o indivíduo não consegue simbolizar e acaba traumatizando a ele mesmo, e, consequentemente deteriorando-o e alarmando a sociedade. Porque não é só o crime que cria alarme social. Quando leis sancionadoras em relação à norma são criadas, acaba gerando o temor.  

MultiCiência: Outras relações que o senhor estabelece são entre a Semiótica e o direito. Como elas interagem?
Luís Eduardo: Como um texto estrutura a própria leitura dele mesmo? Essa é uma pergunta complexa, mas muito importante que eu trago no capítulo “Hermenêutica jurídica analógica” e o sentido literal possível. Essa ideia pode ser respondida a partir da ideia de interpretante, da semiótica, e da ideia de valor. Então, aprofundei algumas noções, como a de valor, que é dada por Saussure e que é fundamental para definir qual é o campo de ação e qual o sentido possível das palavras. A ideia de valor já remete à de estrutura. E, o direito, sendo linguagem, tem total relação com a semiótica. A linguagem do direito tem que expressar o que está dizendo. Pode ser ela a jurista, do legislador, mas também tem que ser a linguagem do povo, porque é uma linguagem comunitária, portanto guarda sentidos que têm que ser comuns.
                                                                           
MultiCiência: “Em nome da lei, quem se vinga”? O que leitores podem esperar desse capítulo?
Luís Eduardo: A lei sempre esteve associada ao sentido de razão. Aristóteles dizia que a lei é a razão e não a paixão. Essa é uma visão cômoda, porque a lei pode ser usada como instrumento de vingança. A própria psicanálise diz que a lei pode ser utilizada para perseguir pessoas. A norma não surge em um mundo atemporal, mas na sociedade dentro de um contexto de lutas de classe, e, foi feita para segregar mulheres, negros e minorias que estavam se organizando em busca de direitos. Então é importante analisar a mensagem e o seu contexto até porque a mensagem da lei só pode ser entendida através dele.

MultiCiência: Qual a relação entre o Direito, as relações de poder e a manutenção do status Quo?
Luís Eduardo: Se fizermos a genealogia, o papel do jurista é de legitimar o poder. A história conta, mas, no livro, trago a ideia de Muller, cujo lugar do jurista não é ao lado do poder, mas estar ao lado do povo. E, as constituições modernas, de alguma forma, incorporaram o ideário originado das classes mais subalternas, mas eles são negados, o que não quer dizer que o direito não seja também um lugar de confronto.


Para o professor, adepto da oratória, escrever é uma tragédia. Mas, durante o ano passado, em função da importância de alcançar outros públicos, se entregou à escrita de um conteúdo que reflete 20 anos de pesquisa. De acordo com ele, a teoria precisa ser capaz de enxergar a realidade local, e de todas as pessoas, não apenas da minoria privilegiada para quem as leis são escritas.

O livro, já disponível online, será lançado na versão física no dia 13 de abril, às 19h, no auditório da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em Juazeiro. Reúne temas que relacionam psicanálise e semiótica, por exemplo, com uma abordagem marxista característica do autor, propondo aos juristas, estudantes de direito e população geral, que o direito não é privilégio de um grupo, e sim, para todas as pessoas.

Texto: Mônica Santos
Edição: Andressa Silva
Fotografia: Ilana Santos