Agricultura familiar estimula a economia no semiárido nordestino

Multiciência 17 junho 2017
As cidades de Juazeiro e Petrolina passaram por uma importante transformação do seu espaço agrário a partir dos anos 1970, com a criação dos projetos de irrigação na região, a partir da parceria entre empresas e o Governo Federal, que visualizou oportunidade de desenvolvimento através da expansão da economia agrária regional. Dentre essas mudanças, foi incentivada a política de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) para atender os agricultores familiares.


Com a instituição da Nova Lei de Ater (12.188/2010), foi criado o Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural na Agricultura Familiar e na Reforma Agrária (PRONATER). Um dos princípios da Assistência Técnica e Extensão Rural é concebê-la como Pedagogia de ATER, relacionando o conhecimento científico com o saber popular. Uma das funções do técnico em extensão rural é auxiliar o agricultor na produção sustentável dos alimentos.


Filha de agricultores familiares, a professora do Departamento de Ciências Humanas, campus III, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Edonilce da Rocha Barros, atuou por 35 anos como extensionista nas extintas Empresa de Assistência Técnica Extensão Rural da Bahia (Emater-BA) e Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola (EBDA). Doutora em Ciências Humanas com estudos sobre o desenvolvimento rural, ela avalia que, com a extinção da empresa estatal de ATER (EBDA) em 2015 pelo governo do Estado e a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) em 2016 pelo governo Michel Temer, os investimentos em assistência pública diminuíram e têm causado prejuízo aos agricultores. “A falta de assistência técnica aos produtores rurais pode acarretar muitos danos. Os trabalhos educativos e ensinamentos que prestávamos a eles precisam ser de forma continuada”, declara.

Em entrevista à Agência MultiCiência, a professora destaca o desenvolvimento ocorrido nos últimos 40 anos, tanto no campo da mecanização agrícola como da agricultura familiar, que hoje tem mais de 30 mil pequenos agricultores na região. “Hoje, se nota o retorno de pessoas com a chegada do progresso no vale do são Francisco”, afirma Edonilce Barros, que tem acompanhando as mudanças no cenário agrícola e orienta dissertações no Programa de Pós-Graduação Mestrado em Educação, Cultura e Territórios Semiáridos (PPGESA) com a temática.  Confira a entrevista realizada por Maiara Santos.

MultiCiência: A agricultura familiar auxilia o desenvolvimento do submédio São Francisco. Como funciona esse programa?
Edonilce Barros: A agricultura familiar é um conceito que surgiu com os movimentos sociais em 1990, partindo do movimento sem-terra, ao colocar pressão no governo para que tivesse um olhar afinado para o segmento da economia rural. Antes, a gente dizia pequeno e grande produtor, o pequeno soava como algo sem valor. Mas hoje temos mais de 4 milhões de estabelecimentos de agricultores que fazem parte dessa política e são eles que produzem o alimento que está nas nossas mesas, como o feijão, arroz, os diferentes gêneros alimentícios, como as hortaliças e os tubérculos, principalmente a mandioca ou macaxeira de Norte a Sul do país. Isso difere da agricultura empresarial que faz somente a prática da monocultura, ou seja, a plantação de um só tipo de alimento, soja, milho ou cana ou mesmo a manga e uva na região, visando a exportação. Os agricultores familiares são multifuncionais e pluriativos, plantam um pouco de cada coisa, formando um grande universo de produtores familiares que contribuem de forma significativa na produção de alimentos no país.

MultiCiência: O Programa Nacional de Apoio à Agricultura familiar (PRONAF) facilitou a vida dos pequenos produtores rurais?
Edonilce Barros: O PRONAF facilitou, pois foi através dessa política que eles conseguiram acessar de forma menos penosa os programas, como o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e as chamadas públicas de ATER. Houve a valorização das mulheres, porque antes só os homens podiam ter acesso a essas políticas. Tudo isso contribuiu para o fortalecimento da agricultura familiar.

MultiCiência:  De que forma a assistência técnica ajuda os agricultores familiares?
Edonilce Barros:   A assistência técnica e extensão rural é importante para os agricultores, pois os grandes agricultores ou empresariais podem contratar assistência técnica particular privada, já os familiares não. Se eles não estiverem assistência técnica e extensão rural, provenientes de políticas públicas, eles ficam prejudicados. Na Bahia, por exemplo, o governo do estado extinguiu a empresa pública estatal que prestava esse serviço para a comunidade do São Francisco, isso causou um impacto muito grande na vida dos agricultores familiares. Isso deixou um vácuo muito grande na assistência técnica rural, pois a ATER publico-privada prestada por Ongs não é suficiente e os agricultores familiares estão reclamando e passando por algumas dificuldades como por exemplo acessar o crédito, o Seguro Safra, ou seja, as políticas públicas.

MultiCiência: Qual a função do técnico em extensão rural para o desenvolvimento da agricultura na região?
Edonilce Barros: O técnico tem um papel importante, pois ele atua com assistência técnica e extensão rural, por isso os programas de políticas públicas denominam Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER). Nessa assistência, os agricultores não só recebem a orientação técnica, como também o técnico convive com os produtores agrícolas, pois não se resume apenas ao proprietário da terra, mas a toda a família, desde a criança ao idoso, orientando a partir da unidade produtiva. Isso funciona como um sistema que interliga a família ao meio ambiente e a sociedade, desenvolvendo a partir daí um equilíbrio, no qual se associa o conhecimento técnico cientifico com o saber popular daquela unidade produtiva. O resultado é um sistema integrado, por isso que digo que a ATER é muito importante para a agricultura na região.

MultiCiência: Como a agricultura familiar pode promover o uso eficiente dos recursos locais?
Edonilce Barros: Esse é o tema essencial da ATER. Mas a primeira coisa que o governo ilegítimo de Michel Temer fez foi o de derrubar o Ministério de Desenvolvimento Agrícola (MDA) que abrange todas as políticas sociais como a agricultura familiar, os quilombos, os índios, povos da Amazônia, dentre outros. Era uma política que corrigia toda defasagem de atendimento a esse segmento que historicamente foi relegado a nada, a desvalorização total. Isso foi um descaso. Com o MDA, a política pública de beneficiamento da agricultura familiar havia sido fortalecida. Com a derrubada do ministério, só restou o ministério que atende somente os grandes empresários rurais. Então, se você acaba com um programa que tinha as políticas de reparação social, a gente não pode esperar mais nada para o crescimento da agricultura familiar. Estamos vivendo um retrocesso semelhante ao que existia em 1990, no qual os 'pequenos produtores' ficavam com a cuia na mão e nada de acesso as políticas que facilitavam a vida do homem do campo. Nessa década houve também o desmoronamento do Sistema Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural, com a extinção da Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural (Embrater), no governo Collor de Melo.

MultiCiência: Políticas como a da agricultura familiar tendem a favorecer a agrobiodiversidade?
Edonilce Barros: A agricultura agroecológica já estava sendo implantada, inclusive a extensão rural com o papel de trabalhar com os agricultores familiares para uma transição, na qual saía da agricultura convencional para a agricultura agroecológica, respeitando a agrobiodiversidade. Tínhamos muitos programas com a questão da agrobiodiversidade, e o programa não nasceu de cima para baixo e sim de baixo para cima. Eles chegavam pelas demandas da sociedade, através das conferências municipais, estaduais e nacionais. Anualmente, existia evento para levantar os problemas ligados ao campo. Essas discussões eram feitas em Brasília através de delegados. Será que ainda vamos ter essas conferências, no qual você discutia as políticas públicas para a alimentação, juventude e mulheres? Em Juazeiro, houve uma conferência sobre a agrobiodiversidade e várias propostas saíram com a participação dos agricultores familiar, jovens, adultos e idosos.

MultiCiência: Até que ponto se considera o uso da agrobiodiversidade como sustentável?
Edonilce Barros: Torna-se sustentável, porque na medida em que você planta economicamente sustentável, socialmente viável e ecologicamente correto, você tem um equilíbrio, e isso forma um tripé que dar sustentação aos modos de produção, por meio dos produtos que nos sustentam e de processos de reprodução da vida. Para se ter um desenvolvimento ecologicamente correto, ou um sistema sócio produtivo, no qual o homem não é apenas o centro disso, a natureza deve estar em uma forma de circularidade com o homem, os dois na mesma posição promovendo a sustentabilidade do ambiente.

MultiCiência: Existe o equilíbrio entre sustentabilidade e crescimento agrário na região?
Edonilce Barros: Na região, está muito difícil esse equilíbrio, primeiro porque percebem a região do submédio São Francisco, como a maior região produtora de frutas, então toda compreensão que se tem é que os empresários produzem frutas para a exportação, com voos diretos para a Europa e Estados Unidos. O problema é a forma como tudo isso é produzido. Eu vou dar um exemplo de um desequilíbrio ambiental que temos. Na região, existe a empresa Agrovale, qual é a sustentabilidade que essa empresa produz para o meio ambiente e a população? Ela cresceu comprando terras de pequenos produtores, na intenção de viabilizar o seu agronegócio. Com isso, surge o problema da palha queimada da cana, trazendo mais complicações para quem já sofre com o problema de respiração como asma e as casas amanhecem cheias de bagaço queimado. Então, essa empresa não está preocupada com a sustentabilidade do planeta, e no lucro do capital. Isto é um dos impactos que uma produção de monocultura pode causar.

MultiCiência: Professora, a sua linha de pesquisa é voltada para o homem do campo. O motivo é por ser filha de agricultore ou existem outros interesses?
Edonilce Barros. Tem duas vertentes, como filha de pequenos agricultores, de vaqueiro, criada desde os meus 15 anos na roça, ingressei nessa área. Terminei meu curso superior e fui trabalhar na extensão rural na antiga Empresa de Extensão Rural da Bahia (Emater-BA), onde dediquei 32 anos a esse trabalho. Foi lá que comecei a minha pedagogia, trabalhando com grupos na região, depois fiz mestrado em sociologia rural por essa causa. Dez anos depois, fui fazer o meu doutorado interdisciplinar em Ciências Humanas com a linha de pesquisa para sociedade e meio ambiente. Tudo isso não foi em vão, e sim por causa da minha trajetória de vida. Até hoje, estou fora da extensão rural, não por opção, mais por pressão, por uma demissão feita de forma arbitraria, mas com tudo isso continuo minhas pesquisas na área, exatamente por acreditar que a gente tem que fazer pesquisas úteis para serem utilizadas pelos pequenos agricultores familiares, acreditando sempre que é possível uma conversão dos sistemas atuais para um sistema que seja mais equilibrado, não inviabilizando a renda dos agricultores, mas para que eles tenham uma vida digna no campo.

MultiCiência: A senhora trabalhou por quase 35 anos na extinta empresa EBDA, que impacto a senhora avalia depois da extinção​ dessa importante empresa na região?
Edonilce Barros: Farei uma avaliação distante, em virtude do pouco tempo do acontecimento. Alguns colegas por um acordo com o sindicato tiveram um compromisso firmado, no qual o governador teria que oferecer alguma oportunidade para aqueles que ainda não eram aposentados. Uma alternativa foi oferecer um novo contrato na Fundação Luís Eduardo Magalhães para atuarem junto a Superintendência  de Assistência Técnica e Extensão Rural da Bahia (Bahiater) que está locada no mesmo espaço onde funciona os Serviços Territoriais de Apoio à Agricultura Familiar (SETAF). Como é que o governo extingue uma empresa e pega alguns desses técnicos experientes e joga em um espaço onde ele não tem nenhuma oportunidade de operar? Esses técnicos ficam sendo ridicularizados, pessoas com mais de 40 e 50 anos, com experiência que deveriam estar no campo prestando os serviços de extensão rural. Acho que deveria ser feito uma reestruturação da empresa e não a sua extinção. Um dos impactos é que os agricultores estão sem o seguro safra e sem acessar as políticas do PRONAF por não ter técnico na Bahia para atender o grande número de agricultores familiares que existem. Para você ter uma ideia só aqui no território do Sertão São Francisco tem mais de 30 mil agricultores familiares. Então, vejo um impacto perverso mesmo. Atualmente, na região, só temos duas empresas particulares que fazem isso. Era para continuar existindo os dois segmentos. Um dia desses fui ao campo, os agricultores me disseram que estão se sentido sem pai e sem mãe depois que a empresa foi extinta. Isso me deixa muito triste.

MultiCiência: A professora teve uma importante participação para o desenvolvimento do semiárido aqui na região. Que transformações a senhora verifica do início da implantação dos projetos irrigados até atualmente​?
Edonilce Barros: São 30 anos só aqui na região, atuando principalmente no distrito Massaroca (Juazeiro-Bahia), onde eu trabalhava na época. O distrito era conhecido como o coração do semiárido e polígono da seca. Guardo até hoje fotos de quando iniciei o trabalho naquela região. Lembro que fizemos um intercâmbio com os agricultores daquela localidade com o país da França, em um projeto de cooperação técnica realizado pela EMBRAPA, o Centro Intercional de Pesquisa em Agricultura e Desenvolvimento (Cirad) e a Emater-BA. Levamos cinco agricultores para as região do Sul da França (Montpellier). Foi uma experiência incrível para ambos, porque quando os produtores daqui viram as unidades produtivas dos franceses eles ficaram maravilhados, e os agricultores da lá, quando viram a organização e o sistema de cooperação dos pequenos agricultores do vale, teceram muitos elogios. Outro avanço que posso perceber é o de mulheres daquela época passando nas ruas com feixes de lenha e latas na cabeça. Hoje, temos a Escola Rural de Massaroca (ERUM) construída pela comunidade. Essas transformações não só partiram de nossa assistência técnica em extensão rural, mas também de políticas públicas implantadas pelo governo da época. Não podemos menosprezar isso, pois foi a partir da gestão de governo popular de Luís Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff que chegou água e luz para todos. Isso modificou o panorama da região.

Entrevista realizada por Maiara Santos, estudante de Jornalismo em Multimeios para Agência MultiCiência.
Texto atualizado em 18 de Junho de 2017.