Cientistas destacam caráter promissor da maconha

Giúllian Rodrigues 31 maio 2017
Possíveis benefícios da Cannabis são apontados para a saúde humana. Entretanto, a substância ainda necessita de estudos detalhados


A Cannabis sativa, popularmente conhecida como maconha, é a substância psicoativa ilícita mais utilizada a nível mundial. Proibida em diversos países, a maconha apresenta um caráter terapêutico muito antigo. A primeira referência à Cannabis medicinal ocorreu na China, em 2700 a.C., quando o imperador Shen Nung descobriu a planta e a utilizava para curar variados males. No século XIX, a substância ganhou grande popularidade, principalmente na Europa. Seus compostos eram utilizados para tratar desde o controle da caspa à diminuição de dores de cabeça e ouvido, insônia e tuberculose.

Entretanto, a variabilidade da concentração de substâncias da maconha gerava, por vezes, efeitos diferentes do esperado em determinados tratamentos. Por isso, na primeira metade do século XX, o seu uso médico declinou. Já a partir da segunda metade do mesmo século, os estudos foram retomados e a maconha ganhou destaque no tratamento de convulsões, náuseas e enjoo. Porém, devido às polêmicas anteriores, a droga, agora ilícita, já não era vista positivamente e tal prática gerou um estigma ainda atual.

Segundo dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), divulgados em 2015, estima-se que 181, 8 milhões de pessoas, com idades compreendidas entre 15 e 64 anos, consumiram a droga para fins não medicinais, em 2013. No Brasil, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que 2,5% da população adulta usou Cannabis entre 2015 e 2016, e a porcentagem sobe para 3,5% entre os adolescentes.

No entanto, quando trata-se do caráter medicinal, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já recebeu 2242 solicitações para liberar a importação do medicamento à base de maconha. Desse total, 2077 processos foram autorizados, um indeferido, 30 aguardam análise e 117 estão em exigência, aguardando algum documento, segundo dados do órgão.

Benefícios do uso medicinal
A Cannabis, nome genérico para indicar a Cannabis sativa, Cannabis indica ou ainda Cannabis ruderalis, suas três principais variações, tem se destacado em inúmeros estudos pelo caráter medicinal. Pesquisas apontam que a planta auxilia e ameniza os sintomas de doenças como epilepsia, esclerose múltipla, mal de Parkinson e glaucoma, através das suas substâncias químicas e dos princípios ativos. Os produtos que possuem essa capacidade terapêutica são obtidos, normalmente, a partir da Cannabis sativa.

Com destaque para a maconha, principal produto da Cannabis, a substância ganha notoriedade nesse sentido, pois sua composição é quase exclusivamente de canabinoides. Essas estruturas são uma classe de compostos químicos diversos que agem nos receptores canabinoides das células moduladoras da liberação de neurotransmissores no cérebro. Esses compostos são, basicamente, derivados de três fontes. Os fitocanabinoides são produzidos pela Cannabis sativa ou Cannabis indica; os endocanabinoides são neurotransmissores produzidos no cérebro ou nos tecidos periféricos e atuam sobre os receptores; e os canabinoides sintéticos, manipulados em laboratório, são estruturalmente parecidos com os fitocanabinoides ou endocanabinoides e agem em mecanismos biológicos.

Novos constituintes canabinoides e não canabinoides são descobertos com frequência na planta. Segundo a OMS, de 2005 a 2015, o número de componentes identificados aumentou de 70 para 104, e a quantidade de outros compostos subiu de 400 para cerca de 650. Dentre tantos compostos constituintes da maconha, destacam-se o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocannabinol (THC).

O CBD costuma ter efeitos analgésicos, sedativos e anticonvulsivos. Além disso, é indicado no tratamento de doenças como epilepsia, esclerose múltipla, esquizofrenia e dores crônicas. Já o THC, com propriedades psicoativas, tem finalidades antidepressivas, estimuladoras do apetite e anticonvulsivas. Este canabinoide tem sido aplicado no tratamento de asma, glaucoma, síndrome de Tourette, como também mal de Parkinson e esclerose múltipla.

De acordo com o farmacêutico do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), em Salvador, e vice-presidente da Associação Multidisciplinar de Estudos sobre Maconha Medicinal (AMEMM), Ébano Augusto, é importante destacar alguns dos efeitos positivos da substância quando usada para tratamento de determinadas doenças. “No mal de Parkinson, a Cannabis elimina grande parte dos tremores causados pela doença. No caso do mal de Alzheimer, ela não só impede a progressão da inflamação do cérebro, que é responsável pela doença, como tem se notado uma regressão dessa inflamação, o que pode reverter, pelo menos parcialmente, o quadro da doença. Já para a epilepsia, principalmente as mais resistentes, a Cannabis consegue aumentar a eficiência do tratamento, e, às vezes, substituir o amparo medicamentoso”.



“A lista de doenças é bastante grande: esclerose lateral amiotrófica (ELA), transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), artrite, artrose, até mesmo doenças psiquiátricas têm notáveis melhoras com o uso da Cannabis”, complementa.

A Cannabis também tem se mostrado promissora em estudos com o câncer, para além dos efeitos da quimioterapia. “No tratamento do câncer, as pesquisas estão em fase inicial. Mas existem estudos, até em animais, que mostram o efeito antitumoral dos canabinoides, com diminuição do tumor, diminuição da metástase e da irrigação para a alimentação desse tumor”, sinaliza o doutor em Neurologia e pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Renato Filev.
Filev explica ainda que outros estudos vêm sendo realizados para o tratamento de alguns tipos de dependências, como do álcool e do crack. “Em meus estudos, tento utilizar a Cannabis como um possível mediador terapêutico dessas enfermidades, na tentativa de auxiliar as pessoas a minimizarem os efeitos colaterais da ausência das substâncias no organismo”, esclarece.

As formas de consumo da Cannabis medicinal variam de acordo com o paciente, a idade e o tipo de enfermidade. A substância pode ser utilizada em forma de medicamento, óleos, pode também ser vaporizada ou fumada. Segundo Filev, não é aconselhável fumar, pois existe certo dano vinculado com a queima de matéria orgânica. “Para evitar o aparecimento de moléculas oriundas da combustão, como hidrocarbonetos e monóxidos de carbono, recomenda-se que o paciente vaporize, em vez de fumar”, orienta.

Regulamentação - Israel foi um dos precursores na regularização da Cannabis, em 1993. Na América Latina, dos 19 países, apenas Colômbia e Uruguai possuem leis mais avançadas de regulamentação para o uso medicinal. Dez proíbem a erva em qualquer circunstância e sete estão em processo de regulação, de acordo com o Mapa da Regulamentação da Cannabis Medicinal na América Latina, divulgado pelo Instituto Humanitas 360.

No Brasil, em 2014, o Conselho Federal de Medicina autorizou a prescrição médica do CBD para crianças e adolescentes portadores de epilepsias resistentes a tratamentos convencionais. Desde 2015, o CBD foi removido da lista de substâncias perigosas e regulado pela Anvisa, com licença para a importação de medicamentos. Em 2016, o THC também foi autorizado.

Em janeiro deste ano, a Anvisa aprovou o primeiro medicamento à base de CBD e THC. O fármaco foi registrado como Metavyl e já é vendido em outros 28 países, entre eles Alemanha, Suécia e Suíça, com o nome de Sativex. O Metavyl é indicado para o tratamento da esclerose múltipla em pacientes que não respondem satisfatoriamente a outros tratamentos, e deve chegar às farmácias a partir de junho. O cultivo doméstico, a venda e o transporte da substância continuam ilegais.

No final do mês de março deste ano, o Senado da Argentina aprovou um projeto de lei que autoriza o Estado a importar e distribuir o óleo à base de Cannabis. A lei também permite a produção e industrialização da maconha, destinadas exclusivamente para o uso medicinal, terapêutico e investigativo.
 
Mais estudos
Um novo relatório das Academias Nacionais de Ciências, Engenharia e Medicina dos Estados Unidos (NASEM), divulgado em janeiro deste ano, oferece um estudo detalhado a respeito dos impactos da Cannabis e seus derivados na saúde humana. Um comitê analisou mais de 10.000 artigos científicos desde 1999 para chegar a quase 100 conclusões sobre o assunto. O grupo de pesquisadores também propôs maneiras de expandir e melhorar a qualidade dos estudos sobre Cannabis, aumentar os esforços de coleta de dados para apoiar o avanço da pesquisa, além de abordar as barreiras atuais referentes à substância.

O estudo destaca benefícios da maconha no tratamento de dores crônicas, espasmos musculares, distúrbios do sono, náuseas e vômitos em pacientes com câncer que fazem quimioterapia. Quanto aos riscos do uso da Cannabis, o relatório aponta que quanto mais as pessoas utilizam a droga e quanto mais cedo iniciam o consumo, maior a probabilidade de se desenvolver um uso problemático da substância. Os riscos incluem também a possibilidade do desencadeamento de bronquite e tosse crônica, além de ataques cardíacos. Mas ainda não é comprovado qualquer vínculo com doenças respiratórias, como doença pulmonar obstrutiva crônica ou piora da função pulmonar. Como também são necessárias mais pesquisas para comprovar se, e como o uso da Cannabis, está associado a ataques cardíacos, acidentes vasculares cerebrais e diabetes.

Além disso, em relação às pessoas que possam ter predisposição, histórico na família ou já manifestaram algum tipo de distúrbio psicológico, é necessário cautela. “O uso da Cannabis pode ser um gatilho desencadeador dessas síndromes. Recomenda-se que esses indivíduos não façam o uso, pois ainda há a falta de estudos mais profundos para indicar quais são as relações da dependência e o que poderiam trazer de ruim”, explica o biólogo e pesquisador da Associação Brasileira de Estudos Socias do Uso de Psicoativos (ABESUP) e do Centro de Estudos e Terapia de Álcool e Drogas (CETAD), Eric Gornik.

Nesse sentido, pesquisadores defensores do uso medicinal da Cannabis afirmam que a necessidade de mais estudos e a quebra de barreiras, aliada à regulamentação, são necessárias para o desenvolvimento dos seus benefícios. “Mais pesquisas seriam feitas de uma maneira menos clandestina, com mais rigor, com uma burocracia definida e uma tramitação para a obtenção dessas moléculas de forma muito mais facilitada. Ainda hoje esse é um terreno bastante ardiloso de se cruzar”, sustenta Filev.

Para Gornik, o Brasil ainda permanece atrás de outros países do mundo no que se refere às pesquisas sobre o uso medicinal da maconha. “Existe uma série de derivados da Cannabis que podem ser produzidos, e que somente com estudos sérios e sistemáticos, poderiam trazer resultados. Mas neste momento, mais importam os resultados que outros países e outros pesquisadores estão atingindo, pois o Brasil ainda não tem uma base de dados de pesquisa, apesar dos avanços nos últimos anos”, declara.

Augusto reprova a postura crítica da classe médica referente aos tratamentos com Cannabis. “Ainda se observa uma resistência maior por parte dos médicos para a prescrição da Cannabis do que pelos pacientes em utilizá-la. É triste ver a classe da saúde impondo obstáculos, tendo em vista que deveriam ser os primeiros a entender os benefícios dessa substância”, lamenta.


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Esta reportagem é resultado de uma parceria com a Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura UFBA.
Texto: Marina Aragão, estudante do curso de jornalismo da UFBA e repórter da Agência de Notícias em CT&I