A resistência negra, musical e poética de Cátia de França

. 12 maio 2015
Por Emanuel Andrade e José Menezes / Produção de Paulo Pedroza

No começo da década de 70, a jovem paraibana Cátia de França debanda para o chamado ‘Sul Maravilha". Chega ao Rio de Janeiro levando na bagagem o sonho de seguir carreira artística. Trabalhou como datilógrafa em uma empresa americana. Se a labuta era de segunda à sexta, a ordem era cantar nos fins de semana. Fez bares e restaurantes cantando bossas, Milton, Caetano, Gil, Vandré e até Roberto Carlos. Quando achava brecha, empurrava umas de suas criações. Aos poucos, a estrada foi se consolidando graças aos amigos que chegaram antes preparando o terreno. Como ela chama de trabalho de formiguinha, foi só Zé Ramalho lhe abrir os espaços que começou a odisseia musical. Nesta entrevista exclusiva ao blog Multiciência, quando esteve recentemente na região pra fazer shows e lançar seu novo Cd No bagaço da cana de um Brasil adormecido, Cátia fala da trajetória, sucesso, ostracismo, religiosidade e de como se livrou das garras da ditadura.


MULTICIÊNCIA – De onde veio Cátia de França e como caiu na trilha da MPB?

CÁTIA DE FRANÇA - Sou litorânea, mas gostaria de ser do interior, tipo Cátia de França de Puxinanã, de Brejo do Cruz (terra de Zé Ramalho) de Conceição do Piancó, de onde veio Elba, ou Catolé do Rocha, onde nasceu Chico César. Acho tudo isso impactante. Lá em João Pessoa, já tinha música na minha vida. Ouvia clássicos até os 15 anos para ser concertista, pensando em atuar em concertos. Mas o fato de eu ter que ir para o colégio, fui entrando no mundo popular pelo violão. Minha mãe me matriculou em uma escola famosa e foi quando conheci um grande músico chamado Diógenes. Logo comecei a participar de festivais com ele e não sai mais desse território.

M- Você é da geração que deu margem para a Música do Nordeste. Zé Ramalho, Elba, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, entre outros surgiram na segunda metade dos anos 70. E de repente nesse elenco a estreante Cátia de França traz um disco com um título grande “20 Palavras Girando ao Redor do Sol.....
CF- Havia uma gravadora em Recife, chamada Rozemblit, que tinha um catálogo maravilhoso. Devido às enchentes de 1975, a maior parte do acervo se perdeu. O disco Paêbirú de Zé Ramalho e Lula Côrtes, por exemplo, era um deles que me influenciou muito. Eu já vivia aquela coisa de tentar o “sul maravilha”. Para gravar, tinha que ir para o Rio ou São Paulo. Nessa fase, vivia em Pernambuco, no interior, estudando em um colégio interno. Quando retorno, minha mãe percebe a necessidade de eu entrar de novo em ação porque vinha de um exílio voluntário, o que foi decisivo na minha carreira. Então 20 Palavras... foi uma largada deslumbrante porque até hoje as pessoas querem que seja feito um relançamento à altura em CD remasterizado. Esse disco foi como se ele tivesse entrado pela porta da frente no mundo do disco, da forma mais triunfal possível, porque os melhores sanfoneiros da época estão lá: Sivuca, Dominguinhos, Severo ( os três In memorian) e os melhores percursionistas como Sérgio Boré, Chico Batera, além de Lulu Santos na guitarra, Bezerra da Silva na percussão, fazendo berimbau na faixa Sustenta Pisada.

M- O Zé Ramalho foi seu padrinho e produtor? 
CF- Respaldado pelo sucesso fantástico do disco Avôhai, Zé Ramalho foi o condutor de tudo. O que ele dissesse ou pedisse, a gravadora assinava embaixo. Era uma espécie de padrinho, assim como abraçou Elba e outros que chegaram. A história de Elba entrar para a CBS tem toda uma gestão de Zé. Nesse vácuo foi que entrou também Geraldinho (Azevedo) com Bicho de Sete Cabeças. Existiam dois grandes padrinhos dentro da CBS, era Fagner com os cearenses e vários afilhados a exemplo de Belchior. Era nossa geração, nossa época
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M – Foi quando você saiu pelas estradas fazendo shows? Como foi a recepção do grande público?
CF- Houve um retorno fantástico. Fazia a abertura daqueles shows de grande porte como do próprio Zé Ramalho que me apontou a necessidade de ter uma carreira solo e disse: “faça a sua própria banda e caia na estrada”. E eu o fiz. Com um disco novo na mão é como se fosse um filho e a gente tem de mostrá-lo para todo mundo.

M- O título vem do universo poético de João Cabral de Melo Neto. Sua música está sempre impregnada de citações ou temáticas  literárias ?
CF- Vinte palavras girando ao redor do sol era justamente um poema de João Cabral de Melo Neto. Tem muito elemento dele no disco, como de Guimarães Rosa. A canção Coito das Araras é um pequeno sítio lá em Minas Gerais. O Bonde é do universo de José Lins do Rêgo. Já  Kukukaya é o pai nosso dos ciganos. É toda minha. Convém dizer que a letra é de domínio público, que são quadrinhas de cigano.

M- Até hoje Kukukaya é obrigatória nos seus shows, sem falar que a repercussão com Elba Ramalho e Xangai foi positiva. Como nasceu essa canção de elementos do universo cigano?
CF- Kukukaya surgiu a partir da leitura de uma revista especializada em assuntos esotéricos que vi num consultório, cuja capa trazia a foto da mão de um idoso, o que me chamou a atenção. Copiei trechos de uma reportagem pra ver como é que eu conseguiria aquilo de volta. Depois achei um livro que falava dos ciganos da Bulgária. O termo Kukukaya refere-se a uma disputa em meio à liderança de uma tribo. Quando digo que “o ovo é redondo, vem amor, vem com saúde... é a cigana grávida orando pra que o filho nasça com saúde. E é tudo declaração de amor, como dizer: “onde eu sou chama seja brasa, onde eu sou chuva seja água”. Kukukaya é uma coisa do bem, uma situação de extrema bondade, não tem nenhum carrego (risos).

M- Depois vem o disco Estilhaços, mais dançante e também gestado com reflexos literários ?
CF- Estilhaços foi em cima daquela expectativa de que o artista fazia o primeiro trabalho e, às vezes, não deslancha. Pra fazer o segundo demora e não sai no mesmo teor do primeiro álbum. Neste disco, contei com a parceria absoluta do arranjador Paulo Machado, autor da música América do Sul, que asfaltou a estrada de Ney Matogrosso pós Secos e Molhados e trabalhou com Marina. Ele era técnico de Zé e arranjador. Foi cúmplice e respeitou a chegada dos nordestinos. O cenário musical numa época que quem prevalecia era Rio, São Paulo e Minas.

M- Estilhaços é mais eclético e ainda mais a cara do Nordeste com forró, xote, ciranda... e contou com a presença de artistas de outras gêneros..
CF- Isso. Um disco que tem sertão, litoral, tem Rio e tem o aboio do universo das Minas de Guimarães. Chamamos Clementina de Jesus pra cantar Boi Surubim. Paulo Machado acatou a ideia porque essa mulher era um grande orixá. Ele criou um ambiente como se fosse receber uma rainha. Clementina sentiu-se num ambiente místico quando entrou naquele estúdio que já não era mais o da CBS, era o estúdio Havaí, na Rio Branco. A arte da capa foi feita pela artista plástica, Inez Cabral, filha do poeta  João Cabral.

M- Neste disco tem a bela Ponta dos Seixas, um presente poético que você deu a uma das praias mais famosas de João Pessoa. Mas é verdade que você a compôs por causa de uma tragédia?
CF- Uma coincidência bem curiosa porque não nasceu de algo romântico como muita gente pensa. Ponta do Seixas nasceu de uma saudade quando eu estava em São Paulo e recebi a notícia de um acidente com uma balsa do exército numa lagoa que tem no centro da cidade. Acho que era 7 de setembro quando crianças e adultos passeavam ali dentro. Imagine a gente tudo assustado dentro de São Paulo, com o frio insuportável. Então, fiz essa música. Foi de uma felicidade única pra eu conseguir, me tornou eterna dentro do meu estado. Superei as coisas ruins e compus.

M- Como era sua vida em família na Paraíba? Depois veio o Recife como o horizonte imediato pra você virar artista?
CF- Sou filha única, só que  tenho um irmão por parte de pai, mas não temos contatos. Meu pai era policial e guarda de trânsito. Frequentava muito as casas noturnas, em João Pessoa e Recife que era como se fosse Nova York em relação à capital paraibana. Os artistas começaram lá como eu. Fiz teatro e conheci Antônio Nóbrega. Lembro dele chegando nos diversos festivais. Não tinha essa televisão de hoje e o palco era a TV Jornal do Commercio que dava as cartas e trazia artistas do Sudeste. A Paraíba tava meio morta, com ares de província. Conheci um diretor de teatro que fez meu primeiro show com figurino, direção e cenário, lá na Rui Barbosa, na casa do arcebispo Dom Hélder Câmara. O Recife é que meu deu respaldo pra cantar à noite, fazer parcerias, teatro e ficar cada vez mais conhecida.

M- Já a veia cultural, a paixão por livros e música  você herdou da mãe....
CF- Sempre li muito porque minha mãe era professora e cuidava de uma das bibliotecas mais famosas da época, lá em João Pessoa, com bom acervo e raridades. Convivi com isso: faltava manteiga, mas livro tinha. Meu pai não gostava muito dessa história de livro. Minha mãe obrigava todos a ler de luva, pra não dobrar a página e não passar saliva pra folhear. Ela me alfabetizou cantando. Já nos anos 90, cheguei a publicar livros de Cordel com viés educativo.

M- Então em sua casa a educação política era de esquerda?
CF-  Minha mãe era de esquerda e tinha dentro de casa um retrato de Che Guevara. Dom Hélder Câmara era visto num pôster bem enorme. O livro de cabeceira dela era Josué de Castro, Geografia da Fome.

M – Você falou em Dom Hélder Câmara ( ex-arcebispo de Olinda e Recife), um dos ícones no combate à Ditadura. Como você se saiu nos anos de chumbo quando alguns colegas seus foram perseguidos?
CF- Acho que tenho um anjo da guarda fantástico. Fazia teatro com Luís Mendonça que é de família tradicional nas artes cênicas em Fazenda Nova (Nova Jerusalém, dos Pacheco). Ele era politizado demais, sabia trafegar bem. Mendonça montava cordel, mas com todo o conteúdo político. Ele apadrinhou Elba Ramalho, Tânia Alves, Imara Reis, Lutero Luís e Tonico Pereira. A gente estava nesse caldeirão de talentos entre São Paulo e Rio fazendo música e tudo. Acho que escapei porque era muito caseira e  imagino hoje que só não fui perseguida porque, como diz o ditado,  não estava no lugar errado na hora errada.



M- Depois de toda fase áurea você sumiu ou só foi mesmo da mídia, das emissoras...?
CF- Voltei a morar em Recife na década de 90, mas de lá viajei muito. Sempre fiz shows, fiquei compondo e fazendo mil coisas. Nunca parei. Devido aos dois grandes discos, Estilhaços e Vinte Palavras, sempre me chamavam. Até no Rio Grande do Sul eu fui cantar. A mídia é que fechou os olhos para mim. Na onda da internet, um fã meu do Nordeste que vive em Brasília, fez um blog sobre minha vida e trabalho, aí a coisa ganhou força de novo. Diria que vivo um renascimento.

M- Nessa fase de Recife você volta aos estúdios e faz um disco Feliz Demais. Por que não teve a mesma repercussão?
CF- Ali foi toda uma coisa com pouco dinheiro, um disco independente. Jairo Pires que era um grandão da CBS sai de dentro do grande organismo discográfico e abre um selo dele. Ele soube que eu estava sem selo e resolvei fazer um resgate.  Mas foi com pouco dinheiro, feito nas madrugadas. Colocaram uma bateria eletrônica que não tem nada a ver comigo. Eu avisei que tinha de ter zabumba movida à feijão. É um disco precário, e tem faixas que ficam a desejar, porque foi feito tipo aquele coisa “vamos fazer”. Mas tem grandes pérolas ali dentro.

M- E aí depois você volta em estilo mais clássico com o projeto Avatar sob a batuta da Orquestra de Cordas da Paraíba..
CF- Foi uma maneira de voltar para o mercado.  O antigo que veio pra essa geração tomar conhecimento. A ideia partiu de três sócios que sabiam o que era esse momento de fazer um disco por um novo selo da Paraíba. Lá estão leituras mais lentas de alguns sucessos e tem a participação de Chico César. Fui eu quem deu esse nome Avatar. Com o filme, muita gente achou que eu suguei o nome, mas cheguei primeiro, não tem nada a ver, é uma música até meio mediúnica, meio religiosa, porque ela diz o nome de Deus em várias religiões. É como se fosse uma oração.

M- Com toda essa trajetória e percalços, o que significa a fazer e viver de música hoje?
CF- O que dá dinheiro pro artista é fazer show e vender o disco na estrada. É um trabalho de formiguinha, entregando assim, como se fosse se candidatando a algum cargo político, entregando panfleto, olho no olho. Na saída a pessoa vê, gosta e compra. São poucas gravadoras que não querem mais investir, só querem retorno financeiro o mais rápido possível. Assim, não apostam ficha num desconhecido. O direito autoral na Europa é uma história, no Brasil, é outra, e não adianta mexer que você se dá mal. Então é show, é disco.

M- No Rio, você freqüentou muito a casa do poeta João Cabral de Melo Neto que não gostava de música...
CF- É verdade, por causa de minha amizade com a filha dela que fez a capa de um dos meus discos. Também musiquei alguns filmes dela. Cheguei a almoçar na mesma mesa com o grande poeta. Ele era muito fechado. Não me atrevia a falar de literatura. Era como se eu tivesse na frente do Papa. Você fica economizando oxigênio.  Mas os grandes são muito modestos. Todos os grandes são humildes.

M- O mesmo aconteceu com Jackson do Pandeiro seu conterrâneo?
CF- Eita, minha memória explode de  emoções (risos). Uma vez ele disse: “Neguinha, tu tens um repertório tão rico” e isso me deixou nas nuvens. Cheguei a dividir o palco com Jackson e Anastácia que foi casada com Dominguinhos. Ganhei de presente o  áudio desse show. Às vezes, nem acredito.

M- Pra encerrar, diante sua intuição, onde você acredita que pode chegar com arte?
CF- Chego perto de Deus, que me deu esse dom. Quando a gente vai envelhecendo a gente fica cada vez mais perto de Deus. Tenho minha religião, sou do candomblé. Sou neta de mãe Stela de Oxóssi, na Bahia. É de onde vem meu lado africano com todo louvor.