A luta histórica do bairro Angari pela moradia

. 10 novembro 2008

Com quase 122 anos, o Angari é um dos bairros mais tradicionais de Juazeiro-Bahia. A sua origem está associada às lavadeiras de beira rio, as chamadas Angaris, que para ajudar no sustento de suas famílias lavavam roupas por encomenda e se acomodavam às margens do rio onde o terreno era mais plano devido ao assoreamento causado pelas grandes enchentes. À espera de seus maridos, que saiam a pescar, as lavadeiras cuidavam em viabilizar o trabalho de suas famílias ocupando o espaço de beira-rio.

Além da caça e da pesca, o tratamento animal também é um marco para o bairro. Um curtume que funcionava como matadouro público contribuía para a renda familiar, pois a carne do animal era comercializada por moradores. As vísceras dos animais eram aproveitadas e a de “gordura de cebo” era usada para fazer o sabão da lavagem para roupas, conta Lourdes Costa moradora do bairro. A comunidade do Angari cresceu em torno do rio, e surgiu a necessidade de oficialização e reconhecimento do território.

A Superintendência Regional de Juazeiro (atualmente elevado à Prefeitura Municipal) reconheceu o bairro por volta do fim do século XIX, facilitando os meios para o registro das casas. Toda a ocupação do Angari se deu de forma bastante irregular e crônica. As casas eram construídas de forma aleatória, não havia respeito a construções arquitetônicas nem ao urbanismo. Boa parte das casas em feita de taipa, madeira, adobe. A proximidade do rio e a inexistência de saneamento contribuíram para que a umidade do local atingisse a infra-estrutura e para a perda de qualidade de vida dos moradores Água, lama e esgoto eram expostos e eram constantes queixas de moradores de bairros vizinhos de que o Angari se tornara um foco de doença para toda a população. Por isso, deveria ser extinto e os moradores distribuídos por casas populares.

Embora a comunidade do Angari ganhasse oficialmente a condição de bairro, o projeto de reocupação do território nem sequer tinha as obras iniciadas. As ações se resumiam a simples incentivos públicos para que os moradores ocupassem a parte superior das margens. Passados anos de crescente ocupação ilegal, tornava-se inevitável para o poder público não interferir no processo de evolução do bairro, por isso máquinas e tratores sobre ordens do governo municipal aterraram e sanearam um grande espaço (parte superior da margem do rio) para que houvesse uma reocupação regular do local.

Os investimentos para que ocorressem o a abandono das áreas de risco ocorreram na gestão do prefeito Américo Tanuri junto ao Secretário de obras, João Freitas que, visando às condições de moradia e higienização da cidade, autorizou que depois de desocupadas e mobiliadas, tratores demolissem o cortiço que compunha boa parte do Angari. O território demolido compreendia desde a proximidade da rampa de acesso ao rio, em frente à casa da Diocese de Juazeiro, ate onde hoje se encontra as atuais casas da ribeirinha, próximas ao Nego d’água.

Aos 79 anos e moradora do bairro desde sua infância, Lourdes Costa relata que o processo de demolição findou quando um dos moradores, atualmente falecido, Juscelino Oliveira, à época dono de um galpão depósito que funcionava como armazenamento de carnes de charques, rapadura, fumo, especiarias tais como cravo, canela e gengibre, resolveu desafiar a força da lei. Armado com revólver e espingarda em frente aos maquinistas dos tratores, Juscelino afirmou que não se responsabilizaria por seus atos. Caso as máquinas derrubassem alguma das paredes do seu deposito, ele defenderia ate à morte seu direito de morar no bairro. Reforço policial e patrulhas de operação não foram suficientes para o andamento das obras, visto que a Polícia Militar, na época, era dotada simplesmente de armas e munição de baixo poder de fogo junto aos antigos carros modelo ‘Jipe’.

A legislação municipal também passava por constantes fases de adaptações. E devido à resistência do barquista Juscelino, findou-se a investida municipal. No ano de 1979, houve uma nova tentativa de remoção dos moradores para o bairro João Paulo II, contudo instituições sociais como a Igreja Católica e alguns sindicatos da região tomaram a causa para si e impediram que os moradores fossem deslocados. Representantes da Diocese de Juazeiro e de outras instituições religiosas a partir da década de 80 tiveram papel fundamental na consolidação da estabilidade do bairro, pois, por incentivo da Igreja, as tomadas de decisões entre Prefeitura de Juazeiro, moradores e sindicatos do bairro Angari passariam a ocorrer de forma harmônica e diplomática. O prefeito Jorge Khoury e o secretário de obras Misael Aguilar e a Câmara de Vereadores, discutem nos anos 90 o projeto de lei para a criação de 75 casas populares para os moradores do Angari, sendo que 16 vieram a ser construídas e doadas para os moradores do bairro.

Melhorias do bairro A antiga Superintendência de desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) extinta na década de 1980 também colaborou para a comunidade ao promover o desenvolvimento dos ribeirinhos e do esporte naquela localidade. Ela doou recursos promovendo a construção de uma quadra poliesportiva localizada no centro do bairro. Sob o controle da FRANVALE, o espaço é atualmente administrado pelo seu Manoel Francisco, antigo funcionário da SUDENE que se instalou nas proximidades da quadra e se apropriou do espaço de lazer. A quadra, hoje, é alvo de intriga política para os moradores.

Por duas vezes, a Prefeitura Municipal tentou incorporar o espaço à propriedade do município sendo impedido por um plano de leis que não viabiliza as possessões para uma empresa extinta há tanto tempo, como a SUDENE. Junto a isso, o antigo morador e funcionário aposentado da superintendência insiste em mediar à ligação da quadra e a comunidade com cobranças de taxas para se praticar esportes no espaço.

A recente construção de um condomínio no Angari reflete também o paradoxo da realidade vivida pelos moradores. De um lado prédios, um com 15 outro com 12 andares, (um terceiro com 30 andares em construção), do outro casas, a menos de 50 metros do residencial de luxo, feitas de taipa ou de blocos das antigas Olarias. Empresários que saem com seus veículos do residencial cruzam diariamente com pescadores e lavadoras pelas ruas do bairro, e o que se tem é um contraste social, o alto Angari, formada pela classe media, e o baixo Angari, composto por pessoas que sobrevivem da pesca e da lavagem.

Os condomínios, Champs Elysées e Torre Eiffel, criados por volta dos anos de 1998 a 1999 causam transtornos à comunidade, pois visando criar um espaço de lazer exclusivo para os condôminos, o edifício ocupa um espaço de mata ciliar, próximo ao monumento do Nego d’água, ocupando cerca de 70% do que era um campo de futebol comunitário que funcionava como centro de lazer publico para banhistas e desportistas da cidade, como relata o presidente do bairro, Itamar Castro (Tatai).

A apropriação indevida do espaço público de mata ciliar previu somente multa indenizatória, não havendo cláusulas de desocupação do território, ficando a cargo de empresários da construtora a indenização ao poder publico de cerca de. R$1 milhão de reais pelos transtornos ecológicos causados pela ocupação do espaço, assim esclareceu o morador Luis Andre. A administração do Condomínio foi procurada pela Equipe de Reportagem, mas não quis atender ao repórter.

A colônia de pescadores 

A colônia de pescadores do bairro é um dos grandes pilares de manutenção do sistema pesqueiro em vigor. Fundada no dia 11 de novembro do ano de 1992 a colônia hoje funciona com basicamente suporte à pesca e orientação aos profissionais que ainda vivem a causa do rio e dos peixes. O senhor Domingues Matos, presidente da colônia de pescadores, afirma que a região do médio São Francisco é a mais prejudicada com a pesca, devido aos constantes processos de construção de barragens ao longo do rio, que interfere drasticamente para o ciclo de desenvolvimento dos peixes.

A construção de uma nova barragem no município de Curaçá poderá causar mais transtornos aos pescadores, pois a Piracema, período de desova do pescado onde os peixes nadam contrario ao sentido convencional do rio, fica parcialmente concluído ou concluso em período indeterminado, deixando insatisfeitos os pescadores que saem em busca de seus sustentos. A colônia conta com cerca de 1500 pessoas cadastradas. Estima-se que cerca de 500 pescadores ainda trabalham sobre o regime de autonomia sindical. Segundo o presidente, a colônia fez o projeto de criatórios às margens do rio, visto que os pescadores são ribeirinhos e teriam controle sobre esse projeto. Contudo, a colônia não tem aviso prévio de quando a usina hidrelétrica irá funcionar o que tornou o projeto inviável.

Apesar dos desafios, o Angari se desenvolveu e ofereceu um grande potencial seja na economia pesqueira e artesanal das lavadeiras de roupa ou no potencial esportivo. Um exemplo é Lourival Alves Quirino, O Loreta como é mais conhecido o nadador e campeão bahiano. Ele se tornou uma referência àos que praticam o nado no rio. Aos 38 anos e morador do Angari desde a infância, Lourival tem vários títulos conquistados na natação, e afirma que o bairro tem um potencial de jovens nadadores excelentes, o que faltam são investimentos público em uma escola de natação no Angari e um centro de apoio à cultura da natação.


A cultura do Nego d’água O surgimento de lendas, a principal delas o nego d’água, foi alvo de críticas e elogios, pois a lenda é reafirmada por pescadores que assumem ter visto a imagem lendária do boneco nos cascos das embarcações. A lenda do Nego d’água é o fomento ao ponto turístico do bairro e visando alimentar essa cultura, a Prefeitura Municipal de Juazeiro, na administração do ex-prefeito Joseph Bandeira, criou o projeto de lei que previu recursos para a construção de um boneco semelhante ao Nego d’água.

O investimento de R$ 45 mil reais, gastos em vários caminhões de areia, brita 104 sacos de cimento e muita ferragem foi fundamental para que o artista Ledo Ivo conseguisse criar uma escultura do Nego d’água. Inicialmente o esqueleto (ferragem do boneco) foi montado em um muro no bairro Centenário, junto com a estrutura de montagem da pedra a qual a imagem do Nego d´água se posiciona sentado. Nas mãos do escultor regional Ledo Ivo, a lenda ganha existência e forma, reforçando o mito contado há tanto tempo pelos pescadores.

O Luis Andre, “O Lula”, pescador e contribuinte na obra, relembra que Ledo projetou a escultura tendo com referencia a ponte Presidente Dutra, pois queria que as pessoas ao entrar na cidade visualizassem logo o monumento a fim de se interessarem pelo que seria um boneco de pedra parado no meio do rio. Contudo, o vandalismo constitui se como fator intrigante para os que cultivam a cultura do Nego d’água, pois quando foi inaugurado dispunha de iluminação. Hoje a ação de vândalos é responsável pela escuridão ao qual esta exposto. Outro fator de degradação da cultura do monumento foi à recente queima de uma das antigas embarcações que ficava abandonada próximo ao porto dos pescadores, onde o nível do rio elevado fez, com a ajuda de vândalos, o deslocamento da embarcação ao encontro do boneco, danificando a sua estrutura física.

Contudo, apesar do descaso ao longo do tempo, o bairro Angari é um local que incentiva artistas a produzirem obras. A Musica “Lavadeiras do Angari”, composição de Edésio Santos e Jota Mildes, traz em sua letra o resgate e a valorização do bairro pelas antigas lavadeiras de roupa, pois foi no Festival Edesio Santos da Canção que a música ganhou reconhecimento nacional e contribuiu para a cultura dos ribeirinhos.

A grande admiração e paixão que tinha pela cultura dos ribeirinhos levaram os artistas, Euvaldo Macedo, poeta e fotógrafo, e Paulo Marcos (Parlim), chargista, a retratarem a cultura do Angari como documentário interativo da essência do bairro. A partir de um ensaio fotográfico das margens do rio, Euvaldo descobriu boa parte da história do São Francisco no imaginário dos moradores do Angari.

Ao longo de sua história e das suas tradições, o Angari traz as marcas de um bairro cujo desenvolvimento esteve sempre pautado aos aspectos positivos de Juazeiro, seja pela representatividade cultural do bairro, ou pela histórica existência da população, o Angari é considerado, hoje, símbolo de respeito no imaginário dos que por ali passam e o visitam.

Por Aurílio Marcos é estudante de Comunicação Social Jornalismo em Multimeios